Rui Vilar começou a sua palestra com três breves recordações pessoais sobre o passado recente de Portugal: o final da II Guerra Mundial, com a esperança de que os Aliados trouxessem também a democracia a Portugal;  o antigo mapa da Europa, nas nossas escolas primárias, coberto com os mapas das então colónias do Império português e a frase “Portugal não é um País pequeno”;  e o entusiasmo no Conselho de Ministros, em Março de 77, quando foi decidido formalizar o pedido de adesão às Comunidades Europeias e se contava que seria um processo rápido. Nos três casos, chamou a atenção para a variável tempo e para o facto de que, “quando queremos uma coisa, não podemos esperar que sejam outros a construí-la em vez de nós; teremos de ser nós a assumir aquilo que queremos e realizá-lo.”  

 

Passando para a situação actual, definiu as diferenças nos seguintes termos:

“Perante esta experiência do passado, hoje parece que o tempo encolheu, que o ritmo da mudança acelerou e que o imprevisível e o improvável é que são a regra… O planeamento, em cujas virtudes tanto acreditávamos no início da nossa formação profissional, e que inclui uma dose inevitável de voluntarismo, foi substituído por este processo de adaptação quase passiva a sistemas com uma multidão de variáveis que não controlamos, e que nos remetem para uma situação de espectadores desarmados e não interventores. O exemplo mais evidente é o do funcionamento dos mercados financeiros, em que os Estados perderam, realmente, uma enorme parcela de soberania.” (.../...)

Rui Vilar falou da fase inicial da nossa pertença às Comunidades Europeias, ao que foi feito com a “estabilidade e auto-confiança no novo estatuto europeu de Portugal” e àquela “década fantástica” que vai da Europália, em 91, até à Expo em Lisboa, em 98, e ao Porto, Capital da Cultura, em 2001:  “Na economia foram 15 anos de crescimento, com uma média de 4 por cento ao ano, de convergência com a média europeia, e uma profunda mudança nas condições de vida dos portugueses, em múltiplos aspectos. Passámos do bom aluno inicial para um membro activo nas Comunidades, que culminou com a nossa proposta da Agenda para a Competitividade, que ficou conhecida como Agenda de Lisboa, na altura da nossa segunda Presidência, em 2000. E com este balanço levou a que fosse tomada a decisão de fazermos parte do primeiro pelotão do Euro.”

Sobre este ponto, o orador mencionou a quase unanimidade da adesão à nova moeda, sem ter em conta  “o que significava, para uma economia pequena e ainda competitiva, como a nossa, a perda dos instrumentos da política cambial e da política monetária”.

E prosseguiu com um breve relato do período em que a Europa a que tínhamos aderido começou a mudar:  “A reunificação da Alemanha, e o rápido alargamento ao Leste, tornou-nos mais periféricos, menos relevantes e, por outra vez, mais pequenos. A governamentalização da União, trazida pelo Tratado de Lisboa, fez-nos perder, na arquitectura institucional europeia, aquilo que era a instituição que podia defender o interesse comum e, sobretudo, o interesse dos membros mais pequenos da União.”

“Depois, a crise do crédito subprime, nos Estados Unidos, e a rápida contaminação financeira que provocou, veio evidenciar as fragilidades da arquitectura incompleta do Euro e a impreparação das instâncias europeias para lidar com uma crise de grande dimensão. Primeiro, foi o zigue-zague da política económica determinada por Bruxelas, com o recurso às receitas keynesianas do investimento e da despesa pública; e depois, rapidamente, uma viragem de 180 graus, de travões a fundo na despesa pública. Portugal estava em véspera de eleições, e a inércia da primeira recomendação teve as consequências que são conhecidas.” 

Rui Vilar descreveu o efeito “dominó” da crise das dívidas soberanas sobre a Grécia, a Irlanda, Portugal, a Espanha, Chipre e afirmou:  “Convém agora lembrar que, em alemão, dívida e culpa se dizem com a mesma palavra: die schuld. E que foi a doutrina alemã de estigmatização do devedor que esteve na base dos programas de ajustamento e que influenciou todos os normativos que, a partir daí, foram produzidos na Europa, com cláusulas claramente punitivas dos devedores.”

Sobre o caso português, afirmou:  “Quando nós terminámos o nosso Programa de Ajustamento, alguém disse que tinha acabado o protectorado. O Programa acabou, com a chamada ‘saída limpa’, em Maio de 2014, mas ficámos com uma dívida pública superior à que tínhamos no início do Programa, com um desemprego de dois dígitos, com um crescimento débil, e com problemas encapotados no sistema financeiro, que os testes de stress que foram feitos não ajudaram a resolver, apesar de haver no Programa de Ajustamento mais que recursos suficientes para resolver esses problemas.”

Mas acrescentou:

“Claro que toda a experiência do Programa de Ajustamento teve aspectos positivos, em primeiro lugar a dignidade com que os portugueses aceitaram os sacrifícios, e também a maneira positiva como o sector privado reagiu, nas exportações, conquistando novos mercados e lançando novos produtos, na agricultura, com gente nova e preparada a voltar ao campo e a relançar uma agricultura de qualidade, as empresas que exploraram a formação tecnológica avançada das nossas Universidades, e que são hoje empresas competitivas nas tecnologias de informação e comunicação.  Mas também houve um lado negativo, que foi sobretudo o aparecer de um conjunto de más práticas e uma enorme destruição de valor, em empresas e sectores que tinham uma enorme representatividade na nossa economia  –  todos sabem de que empresas estou a falar.” 

Sobre a situação actual, depois do Programa de Ajustamento, pôs a questão: “Com os problemas estruturais da União Económica e Monetária, e com o quadro de normativos e imposições de Bruxelas, não conseguiremos, sozinhos, ultrapassar o bloqueio que a dívida constitui. Ora se o caminho, na perspectiva económica e financeira, é estreito e difícil, e, não sendo nós de maneira nenhuma, hoje, independentes, autónomos e livres nas opções a tomar nesse domínio crucial, como pode o novo quadro político ajudar ou desajudar a aliviar este encargo e a cortar os laços que nos atam as mãos?” 

Rui Vilar descreveu brevemente a história recente dos partidos socialistas e sociais-democratas, os efeitos que tiveram sobre eles a consolidação das ideias liberais do período Reagan – Thatcher, depois a crise, o abrandamento do crescimento, o esvaziamento da capacidade de os governos terem “uma função social mais distributiva” e o consequente maior protagonismo dos “partidos dos extremos”, ou à esquerda ou à direita. Sintetizou do seguinte modo o caso português:

“Nas últimas eleições, o Partido Socialista, que as deveria ganhar, perdeu-as, e o Partido Comunista foi claramente ultrapassado pelo Bloco. São dois partidos em situação de stress, e a fórmula que foi encontrada para a formação do actual Governo é, para dois partidos em situação de stress, uma forma de mitigar esse stress e de ganhar tempo para poderem encontrar novamente lugar no campo eleitoral. Situação muito diferente da do Bloco de Esquerda, que no conjunto está numa situação tranquila, confortado com dois resultados eleitorais que o colocaram como a terceira força política em Portugal. Neste quadro, para o Partido Socialista, com a responsabilidade do Governo, é muito difícil funcionar como árbitro, porque está dependente do apoio dos dois partidos à esquerda.”

“A questão que devemos colocar é: como será possível, e até quando será possível conciliar as reivindicações distributivas e redistributivas, do Partido Comunista e do Bloco, com uma política que tem que responder aos alinhamentos imperativos de Bruxelas e dos mercados?” 

A concluir, afirmou:

“O grande desafio que se coloca hoje ao Partido Socialista é ser capaz de manter esta negociação e ter tempo, energia e disponibilidade mental e anímica para desenhar uma estratégia de médio e longo prazo e fazê-la aceitar por Bruxelas. Ora a dificuldade desta estratégia é que não chegam realmente as receitas internas.  (.../...) Da Europa também são necessárias mudanças. Sem que exista essa combinação, um grande compromisso da nossa parte, um compromisso de médio prazo para levar a sério e para realizar de maneira segura, e sem mudanças do lado da Europa, não vamos conseguir desatar o nó.” 

Preconizou, entre essas mudanças necessárias, um Orçamento Europeu que assegure os reequilíbrios entre o bloco de países excedentários e os que são obrigados a endividar-se e um Banco Central  “que tenha os mesmos poderes e as mesmas competências que os Bancos Centrais emissores das grandes divisas internacionais, e que não esteja remetido, como está o nosso, o BCE, ao objectivo da inflação, mas que tenha a missão de apoiar o crescimento e o emprego, como tem a Reserva Federal, como tem o Banco da Inglaterra, ou o Banco do Japão”.

"É neste tempo, em que a Europa passou de paraíso a constrangimento, que nós vamos ter que encontrar a capacidade de desenhar o nosso futuro, de uma grande exigência para nós, mas também de uma grande exigência de capacidade de negociação e de convencimento do lado da Europa. Será possível? Eu penso que, pelo menos por imperativo ético, devemos tentar, perante nós próprios, e perante as futuras gerações.

No fundo, é começarmos a guardar mais lenha para os Invernos que estão para vir…"