Ecossistema mediático da era industrial dá lugar ao sistema digital
Para o autor, o sufixo que se refere a morte, ou assassínio, é adequado e intencional, porque este “mediacídio” é precisamente “a morte do ecossistema mediático da era industrial, para dar lugar ao sistema mediático da era digital”.
A nova lógica comunicacional “não é compatível com a estrutura dos meios herdados da era anterior”:
“Há anos venho falando isso e repetindo a ideia de que passaríamos de uma comunicação mediacêntrica para uma comunicação ‘eucêntrica’, na qual cada um de nós é um meio de comunicação potencial. Passamos da era dos meios de massa à era da massa de meios!” (...)
“As redes sociais e plataformas tecnológicas ampliaram ainda mais essas possibilidades e reforçaram os movimentos destrutivos do ecossistema da era industrial, com uma ruptura avassaladora do mercado publicitário. Eis que a minha ideia de massa de meios emerge não só com a proliferação de mais meios digitais, mas também com uma cacofonia perigosa.”
“Infelizmente, esse novo ecossistema virou terreno fértil para a desinformação, a manipulação de sentimentos. Tem gerado polarização, com formação de tribos virtuais, num fenómeno que os sociólogos chamam em inglês de homophily – a tendência de se relacionar apenas com pessoas que pensam como você.”
“O sonho dos efeitos positivos de uma democratização do acesso à informação e à comunicação acabou se tornando um pesadelo, que deu margem à actual onda de populismo e autoritarismo. Exactamente o oposto do que muitos pensavam.” (...)
Nos Estados Unidos, que conhece bem - Rosental Alves é há mais de vinte anos professor titular de jornalismo na Universidade de Austin, no Texas - os jornais deixaram de ser as “verdadeiras máquinas de fazer dinheiro” que tinham sido.
Como conta o autor, houve um tempo em que “a média de lucratividade dos jornais era de 23%, enquanto o sector anunciante que lucrava mais era o farmacêutico, com 19%; o lucro dos outros ficava abaixo dos 10%”. (...)
“Quando veio a crise provocada pela TV nos anos 1960, muitos jornais começaram a desaparecer, principalmente porque não fazia mais sentido ter vespertinos. Os telejornais os mataram. Vendo a quebradeira de jornais, o governo interveio. Em 1970, o Congresso aprovou a Lei de Preservação dos Jornais, e o presidente Nixon a promulgou, depois de muita hesitação.” (...)
“O tiro saiu pela culatra. As grandes cadeias nacionais foram as que se beneficiaram e, em vez de manter as redacções separadas, os jornais acabaram se juntando, através de compras ou fusões, que levaram a uma monopolização generalizada. No final do século passado, só havia umas trinta áreas metropolitanas nos Estados Unidos que tinham mais de um jornal. Em centenas de outras cidades, só havia um.” (...)
Ao longo dos anos 80 e 90 do século findo, os lucros desses novos monopólios continuaram a aumentar extraordinariamente.
“Também vale lembrar que os principais jornais e cadeias de jornais nos Estados Unidos tinham se tornado empresas de capital aberto, com acções na Bolsa. As famílias proprietárias se encheram de dinheiro com a entrada na Bolsa, mas isso mudou o jogo radicalmente.”
“Em vez das famílias acostumadas a períodos de vacas magras e de vacas gordas, os jornais agora tinham investidores de Wall Street, sedentos de lucros. Os accionistas têm chamadas a cada três meses para saber como andam os resultados e pressionar por mais lucros. E não tinha mais essa de aguentar os períodos de vacas magras.” (...)
A partir de 1995, primeiro a Craiglist (empresa de anúncios classificados grátis, fundada por Craig Newmark), depois a Google, mudaram definitivamente as regras do jogo.
A Google trazia “um modelo de negócio baseado num novo tipo de publicidade, muito barata e muito eficiente, a partir do uso de dados pessoais que iam recolhendo e que eram usados para entregar apenas anúncios que interessavam ao consumidor; se o anúncio não funcionasse, não só o anunciante não tinha que pagar, mas ele ia sendo rebaixado no ranking até ser expulso”.
O texto de Rosental Alves descreve depois, com abundância de documentação, a “tempestade perfeita” que se abateu sobre os jornais a partir de 2008:
“De um lado, a recessão americana, mais uma crise cíclica, circunstancial, as vacas magras a que me referia, que ia passar. E, de outro lado, uma crise estrutural, que não ia passar. Já tinham perdido os classificados e começavam a desaparecer também os display ads, os anúncios grandes. A circulação caía, ainda que este não fosse o problema. O problema eram e são os anúncios, que encontraram outros caminhos.” (...)
“Como pioneiro do jornalismo online, eu tenho me espantado com as críticas dos últimos anos ao facto de os jornais terem oferecido gratuitamente seu conteúdo online nos primeiros anos da Internet. Falam como se todos os da minha geração fôssemos uns idiotas que não tivessem pensado em cobrar.”
“É bom lembrar que isso não é certo. Houve inúmeras tentativas de cobrança no acesso ao conteúdo e praticamente todas fracassaram.” (...)
“Parece que o modelo de negócio dos jornais passou a ser baseado no corte de custos. E corte de custos é um modelo de negócio finito. O fim pode estar chegando para muitos jornais. Quase dois mil fecharam nos últimos quinze anos, segundo as contas de minha colega [na Knight Chair] Penny Abernathy, ex-executiva do New York Times e do Wall Street Journal, que há anos vem desenvolvendo um excelente trabalho de análise e monitoramento do mercado de jornais e da criação dos chamados desertos de notícias.” (...)
“Lá atrás, por volta de 2008, fundos de investimento de Nova York detectaram os jornais como um sector industrial em decadência, do qual poderiam tirar grandes lucros. A gente conhece as histórias desses especuladores que compram empresas quase quebradas, na bacia das almas, dizem que vão tentar salvá-las, mas acabam com elas e, no processo, se enchem de dinheiro.” (...)
“Os fundos de investimento compram os jornais de olho nos imóveis e começam sua estratégia de dilapidação das empresas. O maior desses fundos, ao ver essa oportunidade mais de uma década atrás, formou também uma empresa imobiliária que se especializou em ganhar milhões de dólares negociando os prédios dos jornais. Os fundos, em geral, não dão a menor bola para estratégias digitais porque, ao contrário do que dizem, não estão nada interessados em metas de longo prazo, mas sim no curto e no curtíssimo prazos.” (...)
Depois do naufrágio, o autor apresenta exemplos do que pode sobreviver: por exemplo o “jornalismo sem fins de lucros”, na forma de startups noticiosas, nativas digitais, que “nascem para preencher o vazio deixado pelos jornais na cobertura de cidades, regiões ou estados”. Ele próprio está associado a uma das mais bem sucedidas, a do Texas Tribune.
O segredo, como conta, é:
“Primeiro, investir no jornalismo de qualidade, com jornalistas bem pagos, numa redacção comprometida com a inovação. Segundo, uma diversificação das fontes de receita, de maneira a não depender muito de nenhuma especificamente. Terceiro, actuar como se fosse uma companhia qualquer.”
“Entender que não ter fins lucrativos é apenas uma definição fiscal, ou seja, um status que se beneficia com o facto de não pagar impostos, e saber que nossos doadores não precisam pagar impostos sobre as doações que nos fazem.”
“Mas também faz parte dessa fórmula de sucesso o facto de que não ficamos de braços cruzados esperando que nos doem. Corremos atrás da grana de que precisamos para financiar o jornalismo de excelência que nossos jornalistas praticam.” (...)
E o autor conclui:
“Não há uma fórmula mágica, uma panaceia. Como disse antes, o ecossistema mediático em que estamos agora é uma selva, com a enorme biodiversidade dos trópicos.”
“Estou super-entusiasmado com o potencial do jornalismo sem fins de lucro, diante da falta de possibilidade de lucro nesse novo ecossistema mediático. Mas não estou dizendo que o jornalismo lucrativo comercial vai desaparecer. Estou apenas afirmando que o jornalismo sem fins de lucro vai crescer e ocupar um espaço que não ocupava antes.” (...)
O texto aqui citado, na íntegra no Observatório da Imprensa