Cunha Rodrigues: “O papel dos juristas foi substituído por outros actores, que hostilizam o Direito”

Cunha Rodrigues começou a sua palestra pelo paradoxo contido numa expressão comum, a de que “esta é a primeira geração que está a viver pior do que a dos seus progenitores”. E interrogou-se:
“O problema está em nós, na União Europeia ou em ambos?”
Fez um breve relato da origem dos Direitos na construção da UE, sublinhando um ponto curioso:
“Convém lembrar que as Comunidades começaram por ter objectivos primordialmente económicos. Por estranho que pareça, e não é, foram os tribunais alemães que inicialmente contestaram a primazia das liberdades económicas e lançaram a primeira pedra do edifício constitucional da União. Por esta via, a jurisprudência comunitária passou a interessar-se pelos direitos fundamentais e construiu um sistema ‘autónomo’ de protecção de direitos, em articulação com as tradições constitucionais comuns aos Estados membros. Mais tarde, o Tratado de Maastricht instituiria a cidadania europeia.”
Tendo citado ainda a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada já em 2000, indagou:
“E, no entanto, o que se vê? Milhões de desempregados, penúria nos sistemas de educação e de saúde, racionamento na justiça, falência de empresas e ameaças de ruptura dos sistemas de segurança social. Quer isto dizer que os indignados que enchem as praças e as ruas são titulares de direitos e não meros descontentes ou recalcitrantes? Quer. Mas não é verdade que os direitos têm um preço ou, numa linguagem mais contundente, dependem do produto nacional bruto? A resposta torna-se mais difícil.”
A partir deste ponto, Cunha Rodrigues parte para a referida análise da “Desconstrução do Direito”, nos seguintes termos:
“Sucedeu que o papel dos juristas foi substituído por outros actores, que hostilizam o Direito e se apropriaram da linguagem das ciências exactas para conquistarem adesão… porque é fácil acreditar que os números são números, não enganam, e quem quer pode entendê-los. Com a crise, estes protagonistas adoptaram um corpo de doutrina (os modelos) e uma fé (os mercados) que, pela sua natureza rebelde à ética e ao Direito, são desagregadores.”
O orador explicou que, à data do início da crise, “a União Europeia se encontrava indefesa, por ter cometido erros graves de concepção e previsão ao criar a moeda única; não só tinham ficado por resolver problemas de harmonização orçamental, bancária e fiscal, como não se tinha imaginado (ou teria?) que a adopção do sistema produziria efeitos assimétricos nos Estados membros, com incidência especial nos países periféricos do Sul”.
“A Europa foi então capturada por um sentimento de emergência e rompeu com qualquer ideia de pertença e solidariedade, alinhando pelo ‘salve-se quem puder!’. Curiosamente, o ‘salve-se quem puder’ partiu de quem sabia que podia previsivelmente salvar-se… As instituições europeias que, até então, tinham sugerido políticas de investimento público e de estímulo ao consumo, associaram-se docilmente a decisores internacionais para decretarem a austeridade e aderirem a um discurso que apela à flagelação dos Estados Membros que apostaram (por vezes, exageradamente) na despesa pública.”
Cunha Rodrigues descreveu os “novos actores” que vieram como os orçamentistas, cujo ADN “os leva a seguirem acriticamente as hierarquias, a trabalhar com números e estatísticas e a reagirem com prontidão e excesso quando se fala de emagrecimento do Estado Social, ou da necessidade de que todos vivam dentro das suas possibilidades, mesmo aqueles que não têm possibilidades nenhumas. (…/…) E, deste modo, a ‘austeridade’ encontrou terreno fértil para produzir danos irreparáveis no Direito. (…/…) Está pois em marcha, em alguns países da Europa, um processo de desconstrução do Direito.”
No prosseguimento da sua palestra, prévia ao jantar-debate, o orador falou de situações em que “os cenários jurídicos e políticos estão literalmente dominados pelas leis do mercado, a ponto de poder dizer?se que deixou de ser possível localizar, com rigor, os centros de produção das leis. Por outras palavras, desconhecemos, em rigor, quem nos governa.”
Mais adiante, afirmou:
“De modo idêntico ao que tinha sucedido com a desconstrução das religiões, a desconstrução do Direito está a dar lugar a (utilizo a expressão metaforicamente) ‘culturas profanas’ que contestam ou desvalorizam os sistemas de valores, em nome de uma realidade económica que evocam como se tratasse da natureza das coisas.
Não é raro ver prestigiados formadores de opinião sustentarem que os direitos fundamentais são apenas os que o produto nacional bruto permitir. Numa linguagem menos erudita, isto quer dizer que são os mercados que decidem os limites dos nossos direitos.”
Na parte final da sua intervenção, Cunha Rodrigues sintetizou deste modo as grandes questões:
“A desconstrução do Direito é indubitavelmente um factor de risco democrático. É neste contexto que certas interrogações merecem resposta. Continuarão as instituições e as jurisdições comunitárias a aceitar o desafio do legislador de integrarem, com sentido de progresso, o Direito da União? Ou serão sensíveis ao espírito do tempo, revertendo o sentido do Direito e da jurisprudência, nomeadamente pela aceitação de cláusulas de emergência ou do esvaziamento do princípio de não retrocesso social? E nos Estados membros? Os sistemas de justiça resistirão à pressão de proclamações de emergência orçamental ou serão capazes de impor aos decisores políticos regras e princípios?”
“O modelo social europeu estará em causa, se se continuar a privilegiar o discurso estatístico e a intangibilidade do modelo monetário que, como é geralmente reconhecido, é um exemplo de incompletude e ineficácia. É tempo de os juristas mostrarem que têm uma ideia sobre a defesa e reconstrução do modelo social europeu.”
A terminar, Cunha Rodrigues referiu-se ainda a “duas situações em que o Tribunal de Justiça decidiu assegurar a efectividade de direitos, interpretando directivas sobre relações de trabalho em conformidade com direitos fundamentais e rejeitando factores económicos ou situações de emergência para suspender ou limitar estes direitos”.
E concluíu:
“A prioridade está, pois, em regressar à política e esconjurar o pensamento único em que muitos apostam (bem expresso naquilo a que se tem chamado TINA - there is no alternative). O pensamento único é inimigo da alternância política, convive bem com o défice democrático, disfarça problemas de liderança e alimenta o sentimento de medo do dia seguinte.”