A renuncia de um professor de jornalismo perante a apatia dos alunos rendidos ao telemóvel
A carta de Leonardo Haberkorn, jornalista e professor de jornalismo, publicada no seu blog El Informante, no dia 3 de Dezembro de 2015, três semanas antes de completar 52 anos, é segundo Luiz Cláudio Cunha “uma despedida, um desabafo, um grito de desespero” que explica os motivos da renúncia ao posto de professor da Universidade ORT, em Montevidéu.
A missiva incontornável do professor tornou-se viral e é o ponto de partida para o artigo de reflexão sobre a actual situação do ensino do jornalismo, publicado no Observatório de Imprensa do Brasil, com o qual o Clube Português de Imprensa mantém um acordo de parceria.
Segundo Cunha, tornou-se num “manifesto virtual, um documento viral e vivo de um mundo distópico que escancara uma perversa contradição da tecnologia disruptiva dos nossos tempos: um excesso de informação caótica para uma geração intelectualmente vulnerável e assediada por um conhecimento cada vez mais difuso, raso, medíocre”.
“Cansei-me de lutar contra os telemóveis, o WhatsApp e o Facebook. Fui vencido. Rendo-me. Atiro a toalha ao chão”, escreveu Haberkorn na sua carta aberta, ao anunciar que, naquele dia, dava aulas na universidade pela última vez. Acrescenta: “cansei-me de falar de assuntos que me apaixonam para jovens que não podem despregar os olhos de um telemóvel para receber selfies. Claro, é certo, nem todos são assim. Mas, cada vez são mais”.
Como professor Haberkorn, lamenta que “é cada vez mais difícil explicar como funciona o jornalismo para gente que não o consome, nem vê nenhum sentido em estar informado”. Certo dia, o professor fez uma série de perguntas à sua classe de 20 alunos. Indagou: que está a acontecer na Síria, país do Oriente Médio mergulhado há uma década numa guerra civil que já matou mais de 470 mil pessoas, metade civis, e produziu mais de 5 milhões de refugiados?” obteve como resposta o silencio total da sala de aula.
Perante a ignorância sobre o que se passa no mundo, Cunha salientou outro exemplo dado por Haberkorn: Numa tentativa de mobilizar a atenção dos alunos, levantou uma questão nacional. Perguntou à turma “qual o partido político do Uruguai tradicionalmente ligado à PIT-CNT (o Plenário Intersindical de Trabalhadores-Convenção Nacional dos Trabalhadores, a maior central sindical do país, que tem 400 mil filiados num país de 3 milhões de habitantes)”. A resposta foi um silêncio sepulcral: “ninguém soube dizer o que era a Frente Ampla, a coligação de esquerda que exerceu o poder na democracia durante 15 anos, elegeu o presidente três vezes a partir de 2005, um deles o mítico José Mujica. O silêncio constrangedor continuou quando Haberkorn perguntou qual o partido dos Estados Unidos era mais liberal, mais à esquerda: Democrata ou Republicano?”
Estes e outros exemplos da atitude dos alunos de Haberkorn, relatados no artigo, segundo Cunha, acabaram por levar a “instalar-se, um conflito insuperável entre o professor e o jornalista, a dupla condição de Haberkorn”
Hoje, ser professor de jornalismo, “é como ensinar botânica a alguém que vem de um planeta onde não existem vegetais”. Mais uma vez dá um exemplo relatado por Haberkorn: “Um dia, o professor deu aos seus alunos a tarefa de encontrar uma notícia na rua. Uma estudante voltou com uma novidade “encorajadora”: “Professor, ainda existem quiosques que vendem jornais e revistas…”
Outubro 22
“O jornalista é treinado para se colocar no lugar do outro, cultiva a empatia como ferramenta básica de trabalho. E então vê que estes jovens – que ainda têm a mesma inteligência, a simpatia e o calor de sempre – foram enganados, que a culpa não é só deles. Que a incultura, o desinteresse e a alienação não chegaram até eles por si só. Que lhes foram matando a curiosidade e que, com cada professor que deixou de corrigir os seus erros ortográficos, foi-lhes ensinado que tudo é mais ou menos o mesmo. Depois, quando se apercebem que eles também são vítimas, quase sem se dar conta [o professor] vai baixando a guarda. O mau acaba por ser aprovado como medíocre. O medíocre passa por bom. E o bom, nas poucas vezes que chega lá, é celebrado como se fosse brilhante. Eu não quero fazer parte desse círculo perverso”, revoltou-se Haberkorn na sua carta de despedida”.
Continuando a falar dos exemplos de grandes reportagens e jornalistas que marcaram a história, dados pelo professor demissionário, que não motivaram qualquer tipo de interesse nos seus alunos, Cunha afirma que “Haberkorn não acredita que uma sociedade democrática seja viável com cidadãos tão desinformados, sejam ou não jornalistas ou futuros jornalistas.
No entanto, salienta que o lamento do professor sobre a falta de reacção de seus alunos não indica uma atitude contra as redes sociais e as suas plataformas e cita novamente Haberkorn:
“São ferramentas maravilhosas. Uso-as na minha vida pessoal e profissional, como jornalista e professor. Crio sempre um grupo de Facebook no curso, onde partilhamos material de interesse e publicamos trabalhos, que todos podem ver e corrigir em conjunto. Mas, claro, ter o Facebook aberto reforça a tentação de prestar atenção noutras coisas”, adverte.
“Não sou contra a Internet, nem o Google, Facebook, Twitter ou WhatsApp. Uso todos. Como jornalista, tiro muito bom proveito de todas essas ferramentas. São instrumentos que permitem potencializar o trabalho jornalístico desde que usados adequadamente”.
Esta apatia está a ser cada vez mais recorrente nas escolas de jornalismo do mundo inteiro, segundo o autor, “assediadas pela overdose de novas plataformas que preferem o entretenimento à informação. Inebriada pelas imagens fugazes, pela música envolvente e pelo conteúdo raso, que não exige leitura nem cansa o cérebro, as novas gerações viciam-se em plataformas trepidantes e balançantes que prescindem de conteúdo, de reflexão, de contexto e de informação – elementos básicos do jornalismo de qualidade e relevância” afirma o autor.
Apesar do sentimento abúlico, aparentemente demonstrado por grande parte dos estudantes de jornalismo, Luiz Cláudio Cunha, termina o seu artigo com uma nota positiva ao afirmar:
“Ao contrário do que diz na sua carta, não nos podemos cansar, nem render, nem atirar a toalha ao chão. Aulas como as de Haberkorn, nunca deveriam terminar. E não podem acabar em silêncio”.
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