Depois de descrever a escandalosa mentira original, Katharine Viner reflecte:

“É claro que esta não foi a primeira vez que denúncias extravagantes foram publicadas com base em provas frágeis, mas a defesa foi extraordinariamente desavergonhada. Parecia que os jornalistas já não tinham que acreditar que suas matérias fossem verdadeiras e, aparentemente, não tivessem que fornecer provas. Ao invés disso, a decisão caberia ao leitor  – que nem sabe a identidade da fonte.”

 

E depois de contar o modo como foram apresentados e tratados os argumentos pró e contra o Brexit, a autora afirma:

“Esta foi a primeira eleição importante na era da política pós-verdade: a apática campanha a favor de ficar na UE tentou contrapor factos às fantasias, mas logo percebeu que a circulação do facto havia sido profundamente falsificada.”  (...) “Uma semana antes da votação  – no dia em que Nigel Farage desvendou seu cartaz inflamatório contra os imigrantes [Breaking Point poster] – a parlamentar Jo Cox, do Partido Trabalhista, que havia feito uma campanha infatigável a favor dos refugiados, foi assassinada e a capa do Daily Mail mostrava um grupo de imigrantes entrando no Reino Unido, na carroceria de um caminhão, com o título “Nós somos da Europa  – deixem-nos entrar!” No dia seguinte, o Daily Mail e o Sun, que também divulgara a matéria, foram obrigados a reconhecer que aqueles imigrantes clandestinos eram, na realidade, do Iraque e do Kuwait.”  (...) 

“Alguns dias após a votação, o principal dos doadores do Partido Independente e financiador da campanha Leave.EU, Arron Banks, disse ao Guardian que o seu pessoal sempre soubera que a exposição de factos não iria ganhar o referendo. ‘Foi uma abordagem no estilo dos media norte-americanos’, disse Banks. “O que eles haviam dito antes era ‘Os factos não funcionam’ e pronto. A campanha por ficar na UE apresentou factos, factos, factos. Simplesmente não funciona. Você tem que se conectar emocionalmente com as pessoas. É o que está por trás do sucesso de Trump.”  (...)

A maior parte do estudo de Katharine Viner trata, finalmente, daquilo que sucede hoje à transmissão de informação, 500 anos depois da criação da Imprensa por Gutenberg:

“Agora somos apanhados em meio a batalhas confusas entre forças opostas: entre a verdade a falsidade, entre o facto e o boato, entre a bondade e a crueldade, entre os poucos e os muitos, os que estão conectados e os alienados; entre a plataforma aberta da Internet  – tal como seus arquitectos a imaginaram  – e os recintos confinados do Facebook e de outras redes sociais; entre um público informado e uma multidão equivocada.”  (...) 

“Na era digital, é mais fácil do que nunca publicar informações falsas, que são rapidamente compartilhadas e consideradas verdadeiras  – como frequentemente vemos em situações de emergência, quando as notícias são dadas em tempo real. (...) Às vezes, boatos como esses são disseminados em função do pânico, às vezes por maldade e às vezes por manipulação deliberada, quando uma empresa ou um regime paga às pessoas para transmitirem sua mensagem. Seja qual for o motivo, as falsidades e os factos actualmente são disseminados da mesma maneira, através do que os académicos chamam ‘cascata de informação’.”  (...) 

Katharine Viner passa então a ocupar-se do jornalismo profissional, que tem outros vínculos deontológicos e responsabilidade social:

“Nos últimos anos, muitas organizações jornalísticas afastaram-se do jornalismo de interesse público e passaram ao jornalismo popularesco, procurando visitas à página na vã esperança de atrair cliques e publicidade (ou investimento). A manifestação mais extrema deste fenómeno foi a criação de falsas fazendas de notícias, que atraem tráfego com falsas reportagens que são planeadas para parecerem notícias concretas e, consequentemente, são amplamente compartilhadas nas redes sociais. Mas o mesmo princípio se aplica à informação que é equivocada, sensacionalista e desonesta, mesmo que não tenha sido criada para enganar: a nova medida de valor, para inúmeras organizações jornalísticas, é a viralidade, e não a verdade ou a qualidade.”  (...)

“O cinismo dessa abordagem foi explicitado cruamente por Neetzan Zimmerman, que antes trabalhou para o site Gawker como especialista em matérias de tráfego viral. ‘Hoje em dia, não é importante se uma matéria é verdadeira’,disse ele em 2014. ‘A única coisa que realmente importa é se as pessoas clicam para ver a matéria.’ Os factos, sugeriu, acabaram; são uma relíquia da era da impressora, quando os leitores não tinham opções. E ele continuou: ‘Se uma pessoa não está compartilhando uma matéria jornalística é porque, em sua essência, não é uma notícia’.”  (...)

E a terminar, a autora afirma ainda:

“A verdade é uma luta. Dá um trabalho danado. Mas é uma luta que vale a pena: os valores tradicionais da informação são importantes e significativos e valem a pena ser defendidos. A revolução digital significou que os jornalistas  – acertadamente, em minha opinião –  são mais responsáveis perante a sua audiência.”  (...) 

E Katharine Viner conclui:

“Acredito que vale a pena lutar por uma cultura jornalística sólida. Assim como por um modelo de negócios que sirva e recompense as organizações jornalísticas que colocam a busca pela verdade no centro de tudo  – construindo um público informado e actuante que investiga os poderosos –  e não uma quadrilha mal informada e reaccionária que ataca os vulneráveis. Os valores tradicionais da informação devem ser adoptados e comemorados: reportagens, checagem de dados e colheita de declarações de testemunhas oculares, desenvolvendo uma tentativa séria de descobrir o que realmente aconteceu.” 

“Nós temos o privilégio de viver numa época em que podemos usar muitas novas tecnologias  – e a ajuda de nossa audiência –  para fazê-lo. Mas também temos que enfrentar as questões que sustentam a cultura digital e compreender que a transição dos media impressos para o digital nunca foi somente sobre tecnologia. Também temos que nos dirigir à nova dinâmica de poder que essas mudanças criaram. A tecnologia e os media não existem isoladamente  – eles ajudam a dar forma à sociedade, assim como são formados por ela. Isso significa envolver-se com as pessoas como actores cívicos, como cidadãos, como iguais. Trata-se de questionar o poder, lutar por um espaço público e assumir a responsabilidade de criar o tipo de mundo em que queremos viver.”

 

O artigo traduzido no Observatório da Imprensa e o original, em The Guardian, ao qual pertence a ilustração, assinada por Sébastien Thibault