A cerimónia de atribuição do 3º Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural realizou-se no Auditório 3 da Fundação Calouste Gulbenkian, ao fim da tarde de 12 de Outubro de 2015. Estavam presentes Teresa Patrício Gouveia, Administradora da Fundação Gulbenkian; Sneska Quaedvlieg-Mihailovic, Secretária-Geral da Europa Nostra; Guilherme d’Oliveira Martins, Presidente do Centro Nacional de Cultura (e recentemente nomeado Administrador Executivo da Fundação Gulbenkian); Dinis de Abreu, Presidente do Clube Português de Imprensa; Rui Vieira Nery, musicólogo e historiador cultural;  os laureados com o Prémio e várias outras personalidades.

Na impossibilidade de estarem presentes, enviaram mensagens de saudação gravadas o Maestro Plácido Domingo, Presidente da Europa Nostra, e Jorge Barreto Xavier, Secretário de Estado da Cultura.

A intervenção de abertura foi proferida por Guilherme d’Oliveira Martins, que começou por agradecer à Fundação Calouste Gulbenkian, “que pela terceira vez nos acolhe e nos apoia, celebrando, connosco, este dia”, ao Secretário de Estado da Cultura e, por fim, “à Europa Nostra, que o CNC representa formalmente em Portugal, o facto de ter acolhido desde o início a ideia do CNC da criação do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural, e ao Clube Português de Imprensa o ter-se associado ao CNC, desde o primeiro momento, para a criação deste Prémio”.

Guilherme d’Oliveira Martins descreveu a natureza do Prémio citando os termos do seu Regulamento e destacou a figura de Helena Vaz da Silva como símbolo de todos os seus requisitos, “do que neste Prémio queremos distinguir e homenagear”. Dedicou ainda “uma palavra especialíssima para Alberto Vaz da Silva, que pela primeira vez não nos acompanha nesta cerimónia. Tudo devemos a Helena e Alberto”.

Falando dos laureados deste ano, destacou a personalidade de Jordi Savall na “defesa e preservação da herança e da memória históricas como realidades vivas, nas quais o passado é enriquecido no presente para poder projetar-se no futuro como mais-valia”. E acrescentou:

“Falar de património cultural é isto mesmo: ter consciência de que a memória viva do que recebemos da História exige o respeito pela responsabilidade que nos levará a fazer da criatividade e da inovação o enriquecimento necessário do que recebemos e legamos a quem nos sucede.”

Elogiou depois os dois jornalistas a quem foram atribuídas as Menções Especiais do júri deste ano: Adrian Lloyd Hugues, de origem britânica mas radicado há muitos anos na Dinamarca, com três décadas de trabalho nos principais canais públicos de televisão e rádio, onde tem prestado uma “notável contribuição para a divulgação da arte europeia e respectiva influência no património cultural dinamarquês”;  e o espanhol Rafael Fraguas, que tem promovido os valores do património cultural e natural através dos media, em especial pelos seus artigos no jornal diário El País, “onde chama, sobretudo, a atenção para o património ameaçado, encorajando a sua salvaguarda”. Na impossibilidade de este estar presente, recebeu a Menção Especial, em sua representação, Javier Rioyo, Director do Instituto Cervantes.

Coube a Rui Vieira Nery  - musicólogo, historiador e Director do Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas -  apresentar a personalidade e a obra do contemplado com o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva 2015.

A sua exposição passou por uma breve biografia de Jordi Savall, pela sua passagem pelo agrupamento Ars Musicae, de Barcelona, depois a formação na Schola Cantorum de Basileia, onde conheceu Monserrat Figueras, mais tarde os grupos Hespèrion XX e a Capella Reial de Catalunya e, a partir de 1989, a Orquestra Barroca Le Concert des Nations. A dois anos da entrada no século XXI, Jordi Savall e os seus agrupamentos passam a gravar exclusivamente para a sua própria editora, a Alia Vox, o que representa um grande passo no desenvolvimento e na qualidade da sua produção musical.

Tudo isto permite a Jordi Savall os meios de realizar a sua vocação humanista, de diálogo de culturas e pesquisa do património cultural em todas as direcções. Como disse Rui Vieira Nery:

“Por último, e sobretudo, Jordi Savall interessa-se agora e cada vez mais por uma componente que sempre esteve presente nas suas interpretações de música peninsular e italiana, mas que hoje em dia se torna ainda mais evidente: elas tomam em consideração de forma crescente a rede de interacções que está subjacente à vida musical e à composição na Europa do Antigo Regime, sobretudo nos países meridionais. Nestes últimos países, de facto, as raízes árabes e judaicas tinham sido factores genéticos constitutivos desde os alvores da Idade Média, em articulação viva com as tradições latinas e cristãs  -  uma tradição reforçada com constante intercâmbio civilizacional com o Magrebe e a Ásia Menor e, mais tarde, a partir do séc. XV, com as culturas autóctones da África, das Américas e da Ásia. Cada novo álbum aprofundava uma reflexão madura e fascinante sobre o encontro e o cruzamento das culturas, as rejeições e as curiosidades mútuas, as imposições coloniais e as afirmações identitárias, a coexistência difícil, mas possível, da violência por vezes mais extrema com uma capacidade espantosa de encontrar poéticas partilhadas entre vencedores e vencidos, conquistadores e dominados. E esta teia intercultural aplicada às músicas do passado passaria a ser cada vez mais reforçada pelo recurso simultâneo a músicos de formação e raízes muito diversificadas. A par com os cantores e instrumentistas de matriz ocidental, surgiriam agora os virtuosos do alaúde árabe, as percussões africanas, as flautas do Extremo-Oriente.”
A terminar, Rui Vieira Nery afirmou ainda:

“A obra de Savall afirma-se hoje cada vez mais como um poderoso manifesto artístico em prol do respeito, do diálogo e da partilha entre diferentes entidades culturais, étnicas e religiosas, com um combate permanente pela tolerância e pela paz num mundo em que a violência cega, a exclusão social e a intolerância assassina parecem correr à solta.”


Intervenção de Jordi Savall


No seu discurso de aceitação do 3º Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural, Jordi Savall começou por dizer:

“Acredito no poder da arte, da música, como Dostoievsky acreditava no poder da beleza. Ele disse que a beleza iria salvar o Mundo. (…/…) Acredito também que a cultura, a arte, não têm sentido se não tornarem possível servir a sociedade, servir o ser humano. Por que motivo, então, vivemos numa época em que há mais guerras do que alguma vez houve, mais refugiados do que alguma vez houve, 30 milhões, mais pessoas apátridas, e no qual, mesmo no nosso Primeiro Mundo, há cada vez mais pessoas que não têm trabalho, que não têm casa, que não têm verdadeiramente vida?”

Referindo outros dos problemas mais graves no mundo contemporâneo, Jordi Savall prosseguiu:

“Ficamos com a impressão de vivermos num mundo em que as coisas estão a piorar todos os dias, e ainda que, de cada vez que pensamos reagir, já é demasiado tarde. (…/…) Não sou um pessimista total, sou simplesmente realista e interrogo-me como é que nós, com a música, com a arte e com a beleza, podemos servir para que as coisas melhorem… Creio que esta iniciativa, como o Prémio Helena Vaz da Silva, é importante, porque a cultura, a defesa do património, são uma das opções importantes; mas é preciso que tenhamos também consciência de que a Europa, hoje, não tem ainda a cultura no centro das suas necessidades principais.”

Sobre este ponto, Jordi Savall recordou que, em relação à música, a situação é ainda mais  complicada:

“Nós vivemos praticamente até ao princípio do séc. XIX pensando que cada compositor era o melhor e que cada novo compositor fazia esquecer os antigos. (…/…) Para Stendhal, toda a história da música anterior a Mozart não existia. Era música arcaica, que se tinha esquecido. Há um momento em que isto muda, e é em 1829, quando um jovem músico e director de orquestra, Felix Mendelssohn, dirige, pela primeira vez, a “Paixão segundo S. Mateus”, de Bach, em Berlim. Isto acontece num momento em que a Alemanha tinha os maiores poetas e filósofos, e foi esse momento que permitiu à Alemanha tomar também consciência do seu património cultural. (…/…) Foi uma mudança que aconteceu na nossa época moderna, há mais de cem anos, quando se reconheceu que este reportório antigo tinha também necessidade de ser interpretado com instrumentos e técnicas apropriados ao estilo de cada época.”

Jordi Savall fez depois uma crítica à política da maioria dos Ministérios da Cultura na Europa:

“Nos países europeus, com a França um pouco como excepção, a música centra-se com a ideia cultural do séc. XIX: orquestra sinfónica e teatro de ópera. E os 80% do património do financiamento destinam-se sobretudo a uma época da música que vai de 1780 até aos nossos dias. A música que vai de 1780 até à Idade Média é deixada à iniciativa privada. Penso que é uma das coisas que a Europa ainda tem de mudar, se queremos que a música destas épocas antigas seja verdadeiramente recuperada e se torne acessível às pessoas, a toda a gente. Senão, continuará como hoje. Tenho a certeza que, da grande maioria dos espanhóis, um pouco mais de 40 milhões, haverá não mais de dez mil que uma vez nas suas vidas tenham tido ocasião de escutar a obra de Tomás de Victória ou de Cristóbal de Morales. Não mais do que isso.”

Referiu-se depois à importância da música para o diálogo entre culturas:  “Penso que aprender a música, a cultura, desde a nossa infância, nos dá uma base formidável para aprender o diálogo entre as diferentes culturas. Este diálogo só é possível se não se pensar que a nossa cultura é mais importante do que as outras. Não há diálogo possível se nós acreditarmos que a nossa cultura é mais importante que as outras. É a primeira coisa que se aprende, quando se é músico: quando se está com outros músicos, devemos aprender, ao seu lado, a respeitarmo-nos, a pormo-nos de acordo, e a reagir em conjunto, sem querer oprimir o outro saber, e penso que isso é uma aprendizagem de vida fundamental.”

“Menuhin disse uma vez que numa aula coral não há racismo. Num coro de crianças há gente de todas as cores, e as pessoas vivem, juntamente com o coro, as emoções da sua música e a espiritualidade da música. Contiuo a acreditar, apesar de tudo, na frase de Dostoievsky, que a beleza pode salvar o homem. Mas é preciso que sejamos capazes, em primeiro lugar, de deter as armas, e que as autoridades que têm esta responsabilidade tomem consciência de que a violência só produz mais violência.”

Jordi Savall chamou a atenção para a “degenerescência da democracia”, criticando “as políticas impostas pelas entidades económicas” a países como a Grécia. “Vivemos hoje numa sociedade em que todos os dias a diferença entre os pobres, que são cada vez mais numerosos, e os ricos, que se tornam mais ricos, aumenta.”

A terminar, regressou ao seu tema inicial, da capacidade transformadora da música:

“Mas a música servirá sempre para trazer paz ao nosso coração. Porque, finalmente, é essa a função principal da música, a de nos trazer a paz. Graças a isso, a música tem servido, a milhões de pessoas no mundo, para sobreviver, sejam os judeus sefarditas, os irlandeses que morriam de fome, pessoas que tinham a vida completamente destruída e que, ao cantarem e fazerem música, encontravam a esperança e coragem de continuarem a lutar por viver.”